Com o tempo, fui-me encontrando em processos que não procuram culminar num efeito nem sustentar a atenção através de uma proeza técnica. São peças que crescem a partir de uma escuta diferente, mais centrada na relação com o movimento, a matéria e o espaço. O circo é o seu núcleo, uma linguagem viva, aberta a ser atravessada, tensionada, transformada.
Neste contexto, interessa-me falar de postcirc como uma forma de me situar perante a prática. Uma linha de exploração centrada em ações físicas sustentadas, em estruturas cénicas que se constroem a partir do tempo, da gravidade e da relação com os materiais. O corpo não se articula para gerar figuras virtuosas, mas para investigar o movimento como matéria. A dramaturgia não se organiza por efeitos, mas por acumulação, repetição ou variação mínima. O gesto tem aqui uma densidade própria e modifica o espaço, o ritmo, a atenção de quem observa. O circo mantém-se como linguagem central, mas trabalhado a partir de dentro, como meio para compor texturas, tensões e presenças.
Um género focado em texturas, presença e paisagem
Este tipo de prática coloca a ênfase na textura. Há uma escuta ativa sobre a qualidade do movimento, sobre como a intensidade, o ritmo ou a repetição transformam a relação com o tempo e o espaço. O gesto já não procura uma forma fechada, mas altera o ambiente a partir de dentro. O risco continua a pulsar como uma sensibilidade aguçada, ligada à matéria, ao peso, à vibração e à gravidade.
É um terreno que não se deixa conter por formatos estabelecidos. O que sustenta a peça é o seu movimento interno, a lógica das decisões que se tomam enquanto se fazem. Gerando atmosferas, situações, paisagens que tomam forma pela forma como são habitadas, pela maneira como ressoam em quem as faz e em quem as observa.
Esta forma de fazer foi-se formando a partir da exploração, de dentro, com o corpo, o tato e a atenção como pontos de partida. Sustentando uma ação, deixando que fosse o que aí se desdobrava a estruturar a atenção, gerando uma intensidade que valia a pena partilhar.
Uma palavra pode abrir um campo de trabalho
Se olharmos para a música, o conceito de post-rock oferece uma referência útil. O termo começou a circular no início dos anos noventa, quando alguns músicos começaram a utilizar instrumentos próprios do rock para explorar estruturas, texturas e formas que se afastavam da linguagem do género. A sua música era frequentemente instrumental, baseada na repetição, na densidade e na transformação progressiva do som.
Este movimento ganhou forma graças a uma crítica especializada, capaz de detetar linhas de investigação dentro do que parecia disperso. O jornalista Simon Reynolds deu nome a esse gesto, identificando um conjunto de práticas que partilhavam uma mesma vontade de romper com as formas dominantes sem abandonar totalmente os seus códigos. O termo post-rock não definia um estilo fechado, mas ajudava a ler uma tendência comum e a situá-la num contexto cultural.
No circo, este tipo de leitura é muito mais raro. Falta crítica com critério, com capacidade para propor enquadramentos conceptuais que ajudem a perceber o que está a acontecer. As palavras que usamos para falar de circo muitas vezes ficam à superfície, repetindo narrativas gastas que não revelam a verdadeira riqueza de formas e abordagens que coexistem hoje. Mas essa riqueza existe. E precisa de linguagem para poder circular.
Para poder reconhecer estas práticas, são precisas vozes que se aproximem com atenção, que leiam gestos, ritmos, atmosferas e decisões compositivas. É necessário afinar a escuta, porque quando a linguagem cresce, também cresce o imaginário que sustenta as práticas. E isso abre espaço.
Uma forma de fazer
Falo de postcirc como uma maneira de me situar perante a prática. É uma aproximação que parte das técnicas de circo para explorar relações físicas, atmosferas e composições cénicas construídas a partir da experiência direta. O que me interessa é uma forma de fazer onde as figuras se diluem dentro de um trabalho com o tempo, a densidade e a vibração. Um trabalho que se define por como se faz, não pelo que representa.
As técnicas circenses estão presentes como linguagem viva. Funcionam como matéria flexível, como uma ferramenta para compor com a gravidade, com a presença, com o que acontece no momento de fazer.
Com o tempo, fui encontrando outras peças, práticas e formas de fazer que se enquadram neste espaço. Postcirc, para mim, é uma palavra que ajuda a ler estas formas a partir de onde se articulam. Uma palavra para reconhecer a escuta com que se trabalha, a qualidade das decisões, a relação com o que se constrói em cena. É uma etiqueta útil porque abre espaço, porque dá linguagem a formas que não querem ser reduzidas a nenhuma estrutura fixa. E porque permite reconhecer uma prática partilhada, aberta, viva.
Deixe um comentário
Tem de iniciar a sessão para publicar um comentário.